Bom dia Aventureiros!
Segue abaixo mais um conto que comecei, ambientado no Brasil Colonial na época da Incofidência Mineira e baseado no RPG nacional “O Desafio dos Bandeirantes”. Espero poder dar continuidade a ele, ficou um pouco longo, mas vale a pensa principalmente se você gosta de história.
Até o início da semana que vem o blog volta a normalidade, prometemos.
Ouro Preto, 12 de Maio de 1772.
Tribunal do Santo Ofício – Investigação sobre as atividades suspeitas de Beatriz Gonçalo.
Os referidos documentos serviram de confissão da presente réu e como testemunho contra seus comparssas no crime de conspiração contra o regime, bruxaria e blasfemia. Estão indexados apenas os dados relevantes do diário da réu Beatriz Gonçalo.
16 de Junho
Os enjôos são constantes, as tonturas são frequentes, mais algum tempo e não será possível esconder de ninguém minha condição. A ama da casa grande, negra Ana, já percebeu, mas discreta que só ela ainda não comentou nada comigo, espero que com ninguém também. Hoje, após a aula de piano, espiei os negros jogarem capoeira na senzala, não vi Naolam entre eles, devia estar estudando com seu avô. Ainda bem que não o vi, não sei como agiria se o visse.
20 de Junho
Sinhozinho Henrique apareceu hoje em nossa casa. Veio trazer o gado de seu pai e conversou muito com meu pai no escritório. Pude captar a intenção dele em arranjar um matrimônio, mas não comentaram nada comigo, sinal de que meu pai ainda não aceitou as propostas e investidas dele. Pobre papai, em seu esforço em querer um casamento honrado para sua filha, ele nem espera o que carrego no ventre.
23 de Junho
Encontrei Naolam pela primeira vez desde aquela noite, fiquei um pouco sem fôlego e não pude esconder meu constragimento. Ele, ciente do incômodo que me causava, foi rápido em sua passagem pela sala de música e seguiu até o jardim onde foi ajudar o jardineiro com um canteiro de tempeiros. Furtivamente ia espiá-lo algumas vezes, em uma delas ele percebeu, um sorriso discreto aparecera de sua boca grande.
02 de Julho
Mais uma vez, sinhozinho Henrque tenta convencer meu pai de arranjar um casamento comigo, mas ele continua firme em suas convicções. Sabe que criadores de gado não dão maridos tão bons quanto donos de engenho e, a julgar pelo pai, sinhozinho Henrique não deve ser boa pessoa.
09 de Julho
Consegui finalmente conversarcom Naolam, ele ficou muito preocupado, afinal eu seria duramente castigada, apanharia, iria para um convento e teria a criança fruto desta união morta ou escravizada, mas Naolam não. Ele seria duramente torturado, sofreria muito por minha culpa em ceder aos seus encantos, temos que dar um jeito de resolver esta situação. Ele falou que iria conversar com seu avô, que era um babalorixá inteligente, e que nos daria uma resposta. Ao nos despedirmos ele me deu um abraço, estar novamente em seus braços fortes me fez ficar tonta e, se não fosse tão arriscado estar em sua presença ficaria ali por mais tempo.
11 de julho
Passei hoje pelo escritório e vi meu ai apreensivo quanto as contas e despesas do engenho, se a coisa não melhorasse cedo ou tarde ele terá que aceitar as propostas de sinhozinho Henrique. Se isso acontecer minha condição trará mais problemas ainda. Poderei ser acusada de adultério com um dos escravos de sinhozinho Henrique ao ele ver uma criança negra saindo de um ventre branco, a pena então recairá sobre mim, e a desonra sobre minha família. Porque as leis dos homens fazem tão mal ao coração de uma mulher?
13 de Julho
Mais alguns dias e não teremos mais como esconder dos demais o que aconteceu entre mim e Naolam, o escravo angolano. Conversei com ele mais uma vez e tomamos a decisão: fugiremos do engenho. O avô de Naolam, através de métodos que eu desconheço, falou com amigos que são escravos livres na capitania das Minas Gerais, com eles ele combinou nossa fuga, chegando lá Naolam poderá comprar sua carta de alforria, e começaremos nossa vida do zero.
22 de Julho
Conseguimos convencer o padre Júlio a nos casar, não teve a pompa, nem o jeito que sonhava nos meus dias de menina, nem a noite núpcias teve aquele ar de novidade que eu esparava, não. Pude ver no rosto de Naolam que ele fazia isto mais por mim do que por ele. Ele não se importava com essas cerimônias, mas se importava comigo. Sentia em seu abraço algo diferente, mais do que um amante, Naolam era meu homem, era alguém muito especial, não era o negrinho safado que meu pai deveria estar blasfemando neste momento, nem o menino apressado que a ama Ana tanto elogiava, ele tinha algo no olhar que não sabia dizer o que era, tinha todo um ar de mistério que eu não conseguia decifrar.
02 de Setembro
Ainda sinto muitas saudades de casa, de mamãe, de papai, da ama Ana, de minhas irmãs, da fazenda que até então era meu mundo, minha vida. Agora estou em uma casa menor que meu quarto no engenho, sofrendo com o calor das Minas Gerais, mas livre. Naolam conseguiu sua carta de alforria com um amigo branco de seu avô, ele trabalha agora vendendo cocadas na rua. Naolam é inteligente demais para este trabalho, mas é o que dá para fazer sendo negro livre por aqui. Ainda não me habituei com a vida doméstica, não sabia que era tão difícil essa vida de lavar, cozinhar, limpar, mas Naolam é muito compreensivo. Ele me ensina coisas de seu povo, sobre orixás e as conversas que houve na cidade sobre riquezas debaixo destas terras.
16 de Setembro
Pessoas estranhas começaram a frequentar nossa casa, são amigos que Naolam fez na rua, confesso que tive ciúmes, principalmente porque há uma mulher entre eles, uma mulher muito bonita, seu nome ao ser dito pela primeira vez, encheu meus olhos de lágrima: Ana, como minha ama, minha verdadeira mãe, a única que me entendia e compreendia, que sofria comigo em silêncio, minha mãe negra. Ana Cabañas era seu nome. Castelhana de origem, ela vestia-se de maneira provocante, com um colorido vestido vermelho e um generoso decote, não raras vezes era confundida com uma prostituta.
O outro amigo é Baltazar, mestiço já maduro, entra quase sempre acompanhado de um copo de aguardente. Com um facão sempre embainhado ele vive contando histórias de como ajudou muitos negros a fugirem das jazidas desta capitania, fala de uma terra próspera lá para cima da Bahia de todos os santos, ele dizia, onde negros eram donos de si mesmo e todos viviam em harmonia, negros, índios e mestiços. Por fim tinha o doutor Fausto, boticário do vilarejo, ele fala com um sotaque que achei no começo divertido, mas descobri que ele não é de gostar de brincadeiras não. De origem teutônica, doutor Fausto vive falando de coisas antigas e mistérios ocultos, alquimia e que utiliza seu trabalho como fachada para suas reais intenções.
29 de Setembro
Somente hoje descobri as reais intenções deste grupo de amigos de meu marido. Eles já se conheciam antes mesmo de ele vir para cá, conversam através de rituais para mim ainda confusos nos terreiros. Eles querem que Naolam seja o novo babalorixá do povoado já que o antigo faleceu. Baltazar contou-me que caçava escravos fujidos até que um dia foi paralizado pela proesa de um filho de Omulú, desde esse dia frequenta os terreiros para melhor aprender as vontas dos Orixás. Ana é uma cartomante, utiliza os segredos dos seus ancestrais ciganos para poder entender o futuro. Doutor Fausto é um bruxo, estuda alquimia e rituais, tenta desenvolver poções e feitiços para ajudar os escravos fujidos.
09 de Outubro
Minha barriga começa a se mostrar mais evidente. Já posso começar a sentir que algo se move dentro de mim, um novo ser, um filho de Naolam, guerreiro de Angola. Conheci Ezequiel, o último dos estranhos novos amigos de meu marido. Ele é um judeu que finge ser cristão, eles o chamam de cristão-novo, e fugiu de Portugal com sua família. Ele vive de emprestar dinheiro e comprar e vender ouro, foi ele quem conseguiu a carta de alforria de Naolam. Parece ser um homem respeitável, quando vem a nossa casa, traz junto sua esposa e filhos, o que torna para mim a passagem dos dias mais alegres e familiares. Com meu marido porém, ele fala de coisas como Caballa, árvore da vida e sua conexão com os orixás, quilombos e exércitos negros capoeiristas. A noite quando lhe pergunto quais são seus planos Naolam desconversa, diz que são apenas pessoas com conversas inteligentes e que compram bastante cocada.
27 de Outubro
Naolam começa a trabalhar com Ezequiel na casa de empréstimos, foi bom porque pudemos aumentar nossa renda, e tenho mais certeza que Naolam está em um lugar seguro. Nos dias a noite em que estamos sozinhos, Naolam tem feitos alguns rituais com baforadas em minha barriga e lançamentos de búzios, ele diz que isso serve para facilitar os trabalhos das entidades de cada família que irão negociar sobre a quem a criança irá puxar ou não.
02 de Novembro
Participei pela primeira vez de uma reunião de Naolam com seus amigos em segredo. Ele vestia uma bela roupa colorida que eu mesmo fiz, e parecia ser outra pessoa falando com vozes grossas e mudando seu olhar, eu mesma me assustei quando o vi desta forma. Outros negros também participaram, depois de um tempo eles foram jogar capoeira. Fiquei atenta a Ana jogando suas cartas, a habilidade que ela tinha com isso só poderia ser uma magia ancestral mesmo, ele pode prever todo o meu passado com muita certeza, sem errar nada. Ezequeil fazia desenhos em um papel enquanto comentava com o doutor Fausto sobre datas mais propícias para a realização de determinados rituais.
16 de Dezembro
Minha barriga começa a crescer mais agora, já é possível sentir movimentos mais fortes, chutes, socos movimentos deste pequeno ser dentro de mim. Perguntei a Ana se ela podia perguntar as cartas se essa criança será um menino ou uma menina, ela disse que não poderia dar esta afirmação, apenas disse que tudo correrá certo, e que ela trará alegria a todos da família. Naolam porém foi menos criterioso, perguntou aos búzios e obteve a resposta que será uma menina. Não notei desapontamento em sua fala, ele disse que foi feita a vontade dos Orixás, e que sua avó havia sido uma grande filha de Ifá, e que sua filha poderia herdar este lado místico também.
21 de Janeiro
Baltazar me conta um pouco sobre a vida dos índios. Sua mão era casada com seu pai (branco), por isso ele havia se casado com todas as irmãs dela, e mais outros tipos de casamentos não-usuais. Ele viveu até os nove anos na vila de sua mãe, até a vila ser atacada por bandeirantes e todos capturados e vendidos como escravos. Lá ele conheceu pajés de outras tribos que se transmutavam em animais da floresta para proteger a tribo. Baltazar era o mais normal do grupo, o único que não era metido com coisas sobrenaturais, não diretamente. ele me disse que é porque não tem o dom. Aos poucos fui descubrindo funções específicasem cada um, e me parece que Baltazar oferecia a segurança do grupo, mas contra quem?
12 de Fevereiro
Em um ensolarado dia de verão dei a luz a uma bela menina mulata que chamamos de Mariana. Pingando de suor em nossa cama, tive que fazer sozinha o parto de minha filha que veio ao chamado dos orixás antes da hora. Nem parecia mais que eu era a mesma menina de outrora, das regalias do engenho, da vida onde tudo era proibido e feito em prol da honra da família. Nem quero imaginar a face de minha mãe se visse minha vida hoje, dando a luz a uma menina mulata, com um marido negro cercado de feiticeiros de todas as etnias.
23 de Março
Aos poucos fui entendendo de quem eles deveriam fugir, um perigo que eu sequer sabia que existia nessas terras, uma ameaça que achei que ficava exclusiva no velho mundo: a inquisição. Não era nada simpático aos olhos do tribunal do santo ofício um cristão novo, uma cigana, um negro casado com uma branca e um mestiço libertador de escravos andarem juntos falando sobre magia. Pedi a eles serem mais cuidadosos para o bem de todos, e entendi porque Baltazar era tão necessário, porque Ezequiel gastava tanto montante de dinheiro com a igreja local, e porque o doutor Fausto assumiu a alcunha de boticário. Naolam voltava cada vez mais animado das reuniões, dizendo estar desenvolvendo cada vez mais suas aptidões com os orixás. Esse ânimo era tal que ele brincava como se fosse um menino com a pequena Mariana, batizada na igreja e no terreiro, que levaria assim como nós uma vida dupla: uma de aparência, escondida, outra de verdade, livre. Até chegar o momento de poder ser livre quanto a sua condição.
Não sei porque mas esse conto me remeteu as aulas de história no terceirão!
Muito bom!
Quanto as atualizações do blog, promessa é dívida! Semana que vem vou estar mais livre e assim voltando as atividades.
Cara, estou lendo o livro “O Desafio dos Bandeirantes”, é pau a pau com Tagmar como melhor cenário do brasil. A riqueza da ambientação e das possibilidades dos personagens é imensa. Merece um post inclusive.
Dicas para uma boa noite…
Olá! Vim deixar meu oi e convidá-los a dar um pulinho no #ManualdasEncalhadas Beijoooos…
Todos unidos pela paz nas torcidas! (Texto de @AndreaDestefani)…
Olá! Vim deixar meu oi e convidá-los a dar um pulinho no #ManualdasEncalhadas Beijoooos…
“Encalhadas” jogam RPG? LoL!
Talvez por isso ainda estejam encalhadas? xp
Muito bom o conto!
Valeu Arquimago!! Atualmente minha mente está dando boas machadadas em Arton, mas uma parte dela está pensando em adaptar esse conto (e outros inéditos) para GURPS e Daemon. Seria tipo um GURPS Inconfidência Mineira Místico, já que como podes ver no conto, a magia do candomblé funciona, bem como a da Caballa, a dos índios, a dos ciganos, etc. Estou com uma adaptação para a Guerra do Contestado (maior guerra de Santa Catarina), e a vida de Lampião engatilhadas, mas terei que aprofundar minha pesquisa histórica para torná-los realidade.
Volte sempre aventureiro.
Voltarei sim! E acho que esse tipo de projeto desperta muito interesse!